O Paradoxo da Subsistência Global: Limites Territoriais e a Pegada Humana

A visão de que os atuais 8 bilhões de habitantes do planeta poderiam retornar a um modelo de vida predominantemente rural e autossuficiente, assentado na agricultura de subsistência, é mais romântica do que realista. Ela colide frontalmente com as realidades geográficas e ecológicas. Tal cenário, longe de ser uma solução, poderia, na verdade, gerar uma insustentabilidade crítica e um colapso socioambiental, a luta generalizada de todos contra todos em busca de terras.

A Demanda Inviável por Terra Arável:

Para sustentar um único indivíduo em um regime de subsistência minimamente viável – que inclua o cultivo de alimentos, a criação de animais e o acesso a recursos naturais para habitação e energia – estima-se a necessidade de 1 a 2 hectares de terra por pessoa. Multiplicando essa demanda pelos atuais 8 bilhões de habitantes, chegaríamos à astronômica necessidade de, no mínimo, 8 bilhões de hectares de terra cultivável. É importante esclarecer que essa necessidade de 1 a 2 hectares, e a possibilidade de uma menor demanda, depende do nível tecnológico e das opções de consumo. Uma sociedade mais vegetariana, por exemplo, demandaria menos terra.

Contudo, a realidade planetária é bastante diferente: a superfície terrestre do nosso globo totaliza aproximadamente 14,89 bilhões de hectares. Desse montante, apenas cerca de 1,4 a 1,5 bilhão de hectares são classificados como terra arável, apta ao cultivo. Ou seja, demandaríamos mais de cinco vezes a totalidade da terra arável existente.

O Dilema das “Múltiplas Terras”:

Projetando essas quantificações, a sustentação da população global em um modelo de subsistência agrícola, com foco exclusivo na produção de alimentos e habitação, demandaria o equivalente a 5,3 Terras de terra arável – uma conclusão derivada da comparação da demanda hipotética por hectares versus a disponibilidade global de terra arável. Considerar a conversão de vastas porções da superfície terrestre (mais da metade) para fins de subsistência desconsidera a função vital dos ecossistemas naturais, das florestas e da biodiversidade na manutenção dos sistemas de suporte à vida do próprio planeta. Esclarecemos que essa demanda seria necessária se todos os 8 bilhões de pessoas fossem viver no campo.

Essa inviabilidade, que aponta para a necessidade de mais de cinco Terras para um sustento rural global, solidifica a conclusão de que o desenvolvimento científico e tecnológico, focado na preservação dos ecossistemas, é o caminho, e não meramente o decrescimento. Ou seja, não há como sustentar 8 bilhões de pessoas, cuidar de seus dejetos e preservar ao máximo a biodiversidade sem tecnologia, sem descobertas científicas, máquinas e equipamentos cada vez mais avançados e menos poluentes. Trata-se da necessidade de um outro modo de produção e de uma nova orientação científica, que priorize a bioeconomia, a economia circular e a pesquisa em soluções de baixo impacto ambiental. A questão não é decrescer “a olho”, mas avançar com base em análises de ciclos de vida.

A Pegada Ecológica: Um Indicador de Overshoot (Sobrecarga)

A pegada ecológica serve como um indicador da pressão humana sobre os recursos naturais, quantificando a área biologicamente produtiva (terra e mar) necessária para sustentar os padrões de consumo e assimilar os resíduos gerados. Atualmente, com base nos dados de 2023 da Global Footprint Network, a pegada ecológica média global é de aproximadamente 2,6 hectares globais (gha) por pessoa, enquanto a capacidade de regeneração da Terra (biocapacidade) é de apenas 1,5 gha por pessoa [2].

Isso nos coloca em um estado de “overshoot ecológico”, onde a humanidade (com seus 8 bilhões de habitantes) consome recursos 1,73 vezes mais rápido do que o planeta é capaz de se regenerar (2,6 gha / 1,5 gha ≈ 1,73). Um retorno maciço à subsistência, sem as eficiências (e os desafios) da agricultura moderna, paradoxalmente, poderia intensificar essa pressão, acelerando o esgotamento dos recursos. Para sustentar a demanda de 8 bilhões de pessoas no padrão atual, seriam necessários o equivalente a 1,75 planetas.

Atualmente, o overshoot de carbono figura entre as maiores preocupações, devido ao seu potencial de destruição de ecossistemas inteiros, ao seu efeito cumulativo e à persistente dificuldade da humanidade em concretizar e até mesmo iniciar a transição energética.

O Imperativo da Conservação e Resiliência Ecológica:

Do total de 14,89 bilhões de hectares de terra no planeta, vastas extensões são improdutivas ou essenciais para a manutenção da vida selvagem e dos serviços ecossistêmicos. A comunidade científica e ambiental reitera a necessidade de conservação de ao menos metade do planeta.

A Meta 30×30, um compromisso internacional, visa proteger efetivamente pelo menos 30% das áreas terrestres e marinhas do planeta até 2030 [4].

No entanto, para garantir a biodiversidade, há entendimentos de que precisaríamos conservar metade da Terra. O conceito de “Meia-Terra” (“Half-Earth”), proposto por E.O. Wilson, sugere a necessidade de conservar pelo menos 50% das áreas terrestres e marinhas para preservar a maioria da biodiversidade e os sistemas naturais que nos sustentam [1].

O IPCC, por exemplo, em seu último relatório enfatiza a necessidade de haver uma forma urbana mais compacta e, portanto, planejada.

Um Caminho para a Sustentabilidade Consciente:

O “retorno ao campo” generalizado, como solução, é, portanto, uma quimera. A trajetória viável para a sustentabilidade de 8 bilhões de pessoas passa por uma redefinição de nossos padrões e sistemas:

  • Otimização e Sustentabilidade Agrícola: Aumentar a eficiência na produção de alimentos, adotando práticas agroecológicas e resilientes, tal como a agrofloresta.
  • Combate ao Desperdício: Reduzir drasticamente as perdas ao longo de toda a cadeia alimentar.
  • Transição de Consumo: Promover dietas mais conscientes (com menos impacto ambiental, como a redução do consumo de carne) e modelos de consumo de energia mais eficientes e renováveis.
  • Urbanização Consciente: Desenvolver cidades inteligentes e densas que minimizem a pegada de uso do solo, garantindo a sustentabilidade da infraestrutura e dos recursos.
  • Preservação e Restauração: Investir massivamente na proteção e recuperação de ecossistemas naturais, vitais para a biocapacidade do planeta.
  • Incentivar práticas de cultivo urbano familiar ou vertical.

A gestão da nossa existência no planeta exige uma estratégia de múltiplas frentes que harmoniza a inovação com a resiliência ecológica, garantindo um futuro em que a prosperidade humana e a saúde planetária caminham lado a lado.


Referências (Ordem Alfabética):

  1. E.O. Wilson Biodiversity Foundation. (2025, 10 de julho). Why Half?. Disponível em: https://eowilsonfoundation.org/what-is-the-half-earth-project/why-half/. Acesso em: 10/09/2025.
  2. Global Footprint Network. Disponível em: https://www.footprintnetwork.org/. Acesso em: 12/09/2025.
  3. INPA. Gov. Capítulo 3. CRESCIMENTO POPULACIONAL E A CAPACIDADE DE SUPORTE. Disponível em: https://philip.inpa.gov.br/publ_livres/mss%20and%20in%20press/K%20livro%20port/Capit%203%20com%20figuras.pdf. Acesso em 12/08/2025.
  4. IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). Relatórios de Avaliação do IPCC. Disponível em: [Inserir link específico se disponível, ou manter como referência geral]. Acesso em: [Data do acesso, se aplicável].
  5. PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE (UNEP). Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal. 2025. Disponível em: https://www.unep.org/pt-br/resources/marco-global-de-biodiversidade-de-kunming-montreal. Acesso em 10/09/2025.
  6. Sobrevivencialismo.com. Disponível em https://sobrevivencialismo.com/2019/01/28/o-quanto-de-terra-voce-precisa-para-viver-do-que-planta/. Acesso em 12/09/2025.

2 comentários em “O Paradoxo da Subsistência Global: Limites Territoriais e a Pegada Humana”

  1. Claudio Klein

    Oi Tânia , gostei do texto . Muitas informações. Há termos e projetos que eu pessoalmente não estou familiarizado , mas tenho acordo com as propostas que são apresentadas como possibilidades.

    Minha maior dúvida foi sobre o tema central . Há muitos setores que defendem simplesmente a volta à agricultura básica como solução para os problemas do meio ambiente e do consumo ?

    1. Eu particularmente não conheço grupos específicos. Entrei em contato com várias pessoas que pensam desta forma, leigos ou que se dizem eco socialistas. Alguns grupos anarquistas costumam defender o retorno ao campo. à vida comunitária no campo.

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