
Hoje, sinto que me descrever pelo que não sou é mais fácil. Não é como ‘cidadão’ que me reconheço. Não me considero pertencente a este ambiente urbano. Eu me vejo como um habitante do bioma onde passo a maior parte dos meus dias: o mato, a floresta, o ambiente natural. Então, como devo me descrever? Talvez “matão”, “florestão” ou “ambientão naturalzão”?
A ‘cultura ocidental’ dita ‘civilizada’ nos molda desde crianças, por meio dos nossos pais, a nos identificarmos com a cidade. É na cidade que encontramos os serviços e produtos que usamos no dia a dia. Desde a infância, a cidade se entrelaça à nossa formação e educação, estabelecendo um laço tão umbilical que se tece em nosso próprio ser, uma extensão inseparável de quem somos.”. Mas, quando crescemos, queremos nos ‘libertar’ e nem sempre vemos alternativas lógicas, coerentes, pragmáticas. É aí que percebo o quão dependentes nos tornamos, pois não fomos educados para sermos autônomos, independentes, fora do ambiente da cidade.
Ao se aventurar no ambiente natural, o cidadão comum necessariamente depende de um guia – alguém que conheça o lugar e lhe confira um mínimo de segurança. Essa simples reflexão me gerou imediata revolta, uma sensação de inadmissibilidade. É a vulnerabilidade da minha, da nossa condição, que me indigna: estamos terrivelmente despreparados para enfrentar qualquer emergência ambiental, seja individual ou coletivamente. E as mudanças climáticas já vêm, há muito, sinalizando as graves emergências socioambientais que surgirão do seu agravamento.
Temos que aprender a sobreviver em diversos cenários, porque as mudanças climáticas podem nos obrigar a sair dos locais onde moramos. Grandes catástrofes, como enchentes, deslizamentos, secas, incêndios ou outros eventos disruptivos, forçam os atingidos a uma mudança brusca, e a rota de fuga, muitas vezes, pode ser o ambiente natural.
É preocupante observar como o ser humano contemporâneo tem se distanciado do ambiente natural e, consequentemente, negligenciado o desenvolvimento de habilidades essenciais de sobrevivência. Acostumado à realidade urbana, o cidadão comum tem uma visão bem particular do que é viver no mato, que oscila entre idealização e discriminação. Sente medo porque, em verdade, todos temem, em maior ou menor grau, aquilo que desconhecem.
Como podemos alertar as pessoas sobre a profundidade da nossa vulnerabilidade, ainda mais em contextos de catástrofes climáticas e desequilíbrios de toda espécie. Não percebem que a pandemia pode ter sido apenas uma amostra dos cenários globais que estão por vir?
A história nos oferece uma valiosa perspectiva através da sabedoria dos povos indígenas. Lembro-me de como, em muitas dessas comunidades, as crianças eram ensinadas desde cedo a nadar, a manejar o arco, a rastrear, a identificar plantas e a interpretar os sinais da natureza. Essa profunda familiaridade com o ambiente e o domínio de habilidades práticas não eram meros conhecimentos periféricos; eram a base de sua autonomia, resiliência e bem-estar.
O alerta não é sobre o que nos falta materialmente, mas sobre o que perdemos em termos de conexão e capacidade inata. A segurança não reside apenas na acumulação, mas na habilidade de nos adaptarmos, de sermos autossuficientes em tempos desafiadores e de cultivarmos um conhecimento profundo e respeitoso do mundo natural que nos sustenta. Inspirar-se nos conhecimentos ancestrais, como os dos povos indígenas, pode ser o caminho para resgatarmos essa conexão vital e fortalecermos nossa resiliência para o futuro, preparando-nos para o que quer que a vida possa nos apresentar.
A Paixão por Aprender e a Humildade do Conhecimento
Eu AMO estudar para andar no mato! Cada vez mais e melhor. É como uma terapia. E quanto mais estudo, mais percebo o quão pouco sei sobre o mato. Percebo O QUANTO ainda me falta aprender para me deslocar pela floresta de forma autônoma, em qualquer direção que for necessária — inclusive na vertical.
Então, para responder à pergunta de forma mais concisa, hoje posso dizer que eu, Ivan, sou um estudante da floresta. Sou um apaixonado pela aprendizagem florestal. Não só a aprendizagem formal, o conhecimento que a Academia oferece, mas também o contato com a sabedoria de vida que as pessoas que moram na floresta há gerações compartilham. E nessas conversas que vou estabelecendo com essas pessoas, é que me sinto VIVO, me sinto GENTE, me sinto fazendo parte desse lugar, tanto quanto quaisquer outras formas de vida que vivem aqui. É essa sensação que AMO! Principalmente quando ando por lugares longínquos, ermos, distantes, isolados, onde a gente sente o quão pequeninos somos, quase insignificantes.
O Escalador de Árvores na Amazônia: Desafios e Técnicas
Quando me perguntam o que é necessário para atuar como escalador de árvores na Amazônia, sempre respondo: “Ser capaz de andar no mato de forma mais ou menos autônoma, sem correr muito o risco de se perder!”. Caso contrário, você vai precisar de um guia mateiro que lhe leve até o pé da árvore e o traga de volta em segurança até o veículo (geralmente barco) que o levará de volta à cidade. Ou então: Torne-se você mesmo um mateiro! E essa é a parte mais demorada da aprendizagem para qualquer um que deseje escalar árvores na Amazônia – uma floresta com milhares de espécies de árvores, onde “Tudo aqui é superlativo“.
Escalar é só uma pequena parte do ‘andar no mato’. Andar no mato, até a árvore, é o meio; escalar a árvore é o fim. É como a arte de ler um bom livro: ofolhear das páginas é o meio, chegar ao fim da história é o objetivo, mas o prazer está em cada frase, em cada capítulo vivido.”
Para as técnicas de escalada propriamente ditas, utilizamos principalmente a SRT (Single Rope Technique) para o acesso à árvore e a DRT (Double Rope Technique) para a movimentação no dossel. É fundamental ressaltar que escaladas com esporas ou quaisquer outros métodos que firam a árvore só são empregados em casos de “Amostragem Destrutiva” da espécie. No entanto, é incomum solicitarem esse tipo de serviço a um escalador de árvores, pois para uma amostragem assim, de uma única árvore, é mais viável financeiramente derrubá-la e picotá-la no chão do que contratar um escalador/arboricultor especializado para realizar esse trabalho. Ou seja, para uma “Amostragem Destrutiva” isolada, um bom operador de motosserra é suficiente; não é necessário um arboricultor.
Para atuar como escalador na Amazônia, é preciso ter um emprego que sustente o “vício” de escalar árvores. Isso ocorre porque a atividade em si não garante o sustento financeiro do escalador, que precisa de outra fonte de renda para se manter e, muitas vezes, para adquirir os equipamentos necessários, que são caros. Pois não é possível ter uma vida financeira compensadora só contando com o dinheiro das escaladas. Manaus é uma das capitais menos arborizadas do país, e cortar a árvore na base é bem mais barato para o proprietário do imóvel. É por isso que eu não atuo na área de arboricultura aqui na cidade; prefiro diversificar minha atuação, trabalhando principalmente para pesquisas científicas.
Assim como quase tudo que aprendi a fazer na vida, tudo começou de forma empírica. Mudei essa postura por orientação da Dra. Tânia Sanaiotti, coordenadora do projeto Reprodução do Gavião Real, na área de ecologia, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. A partir daquele momento, passei a ser mais seletivo em relação às minhas escolhas educacionais; passei a priorizar a participação em cursos presenciais, em instituições públicas de alcance nacional, preferencialmente cursos de formação em áreas correlatas à minha área preferida de atuação. Tudo isso para que eu pudesse concorrer a cargos florestais, em quaisquer instituições que trabalhem na floresta, e assim aprender sobre a floresta a partir da análise de diferentes pontos de vista. Pesquisadores são muito específicos; mateiros, como eu, somos mais generalistas pela própria dinâmica do nosso trabalho. Nessa atividade de trabalhar para diferentes pesquisadores e estudantes, vão surgindo afinidades, preferências e possibilidades de crescimento, mas se somam as experiências em diversos campos de pesquisa. É assim que vamos aprendendo a servir melhor, e, quando possível, crescer juntos com eles para prestar um serviço cada vez melhor.
Navegando a Selva: Perigos e Logística
Moro em Manaus, a maior capital da Amazônia Ocidental, e porta de entrada para a maior floresta tropical do planeta. Para de fato adentrar essa imensidão, os rios são as verdadeiras autoestradas da Amazônia, e é DE BARCO que conseguimos chegar mais longe. São as vias fluviais que nos permitem alcançar áreas remotas e laboratórios naturais que seriam inacessíveis por outros meios.
A transposição do barco ao local de escalada é sempre extenuante, em grande parte pelo volume e peso dos equipamentos que carregamos e os diversos mantimentos necessários para: Ida, permanência e retorno.
A origem das provisões e a permissão para uso de recursos naturais dependem do cliente ou do grupo de trabalho. Via de regra, são de origem urbana. Os protocolos científicos e ambientais proíbem qualquer intervenção na fauna para fins alimentares em campo, exigindo que a nutrição seja garantida por outras fontes. Adicionalmente, e em respeito ao meio ambiente, todos os resíduos gerados são escrupulosamente transportados de volta para a cidade, somando-se à logística de retorno.
No entanto, confesso que já experimentei carne de caça. Isso ocorreu em vezes que indígenas participaram da pesquisa ou atividade. Lembro também que comi cobra no terceiro dia do Curso de Adaptação à Selva, do CIGS/EB (Centro de Instrução de Guerra na Selva / Exército Brasileiro). Um pedaço de jiboia cozida… Aquela tinha gosto de lagosta ou camarão! Em campo, é possível obter proteína animal de diversas fontes, e é bom assim. Já imaginou SE cada um tivesse que carregar toda a comida que vai precisar preparar durante toda a excursão, dia após dia!?
CLARO que, quando trabalhamos para pesquisadores, somos levados para uma base permanente de pesquisa, onde toda a comida é preparada por uma cozinheira, e a base é mantida funcionando por uma equipe de manutenção.
Como escaladores, a nossa relação com a fauna não é a de predador, mas temos que nos preocupar com possíveis ameaças. Os animais menores são os mais comuns, e são os que temos mais chances de encontrar: abelhas, formigas, aranhas, mosquitos. As pequenas abelhinhas, por exemplo, procuram nossos olhos para lamber os sais dos nossos fluidos, e é nessas horas penso: “Por que não comprei ‘aquele’ mosquiteiro de cabeça que o vendedor queria me empurrar a qualquer custo?”
A maior parte das pessoas deve se perguntar sobre os animais grandes que, sozinhos, no mano a mano, teriam força ou periculosidade suficiente para matar um humano. Estes são difíceis de encontrar. Nunca me deparei com nenhum, mas tenho certeza de que já me observaram, pois já encontrei várias pegadas. Se um dia eu avistar um, sei que, em primeiro lugar, devo manter a calma, não fazer movimentos bruscos e não tirar os olhos do animal. Depois, sempre de frente para ele, devo me retirar andando de costas, lentamente e me mantendo sempre alerta. Se o animal atacar, vou me defender procurando atingir pontos sensíveis como os olhos e o nariz.”
O maior perigo na floresta é se perder. Eu Já me perdi na floresta, mas isso durou só alguns minutos, durante um temporal. O que eu fiz? Segui o primeiro passo da Regra ESAON, ensinada no Curso de Instrução de Guerra na Selva. Naquela situação, procurei entender a dinâmica das copas balançando ao vento e me afastei de grandes galhos que pudessem cair. Nessas horas, é bom procurar uma clareira para tentar ter uma melhor visualização do dossel.
O Amor pela Vida na Floresta e a Sabedoria Indígena
Hoje, depois de décadas nesta peleja, percebo O QUANTO AMO este estilo de vida. E entre tantos moradores humanos desta floresta que conheci, creio que os que mais verdadeiramente amam estar aqui dentro da mata são os indígenas. E eu admiro MUITO esse amor pelo estilo de vida florestal que eles vivem no dia a dia. Quando algum deles me conta as histórias das suas aventuras e vivências na mata, sinto-me uma criancinha ouvindo seus maiores, uma criança cheia de admiração; uma criança ouvindo atentamente e pensando: “Quando eu crescer, também quero ser assim”.
No fim do dia, depois de estar em casa, e ver todo o equipamento utilizado já higienizado e secando, posso dizer: “Valeu! Agora vamos nos reunir e celebrar”. No dia seguinte, nos reunimos de novo para ver as fotos, com nossas famílias e amigos. Isso é o fim de cada jornada, a celebração do retorno e da experiência vivida.